“Hoje eu não vou te levar pra praia!”, era o que eu dizia a ele todas as manhãs. Estávamos em Búzios, eu tinha três anos. Tio Márcio me olhava com olhos desafiadores e respondia com falso desdém:
“Tudo bem, então eu não vou. Mas aí também não vou poder nadar com você no mar, nem vamos brincar na areia, nem comer milho, nem chupar picolé juntos. Mas tudo bem, eu não ligo, eu fico aqui sozinho”.
“Tá bom, então eu te levo!”, eu falava rindo, após fingir ser convencida por ele. “Mas só hoje!”.
Aos sete anos comecei a colecionar moedas. Tio Márcio ficou sabendo, veio nos visitar e me trouxe um saco com mais de cem moedas diferentes, das terras mais longínquas, dos tempos mais remotos. Mal pude acreditar quando vi. Lembro de virar o saco ansiosa e espalhar as moedas na mesa da sala; enfileirei-as das maiores às menores, algumas tinham até um furo no meio. Admirei uma a uma. Tentei categorizá-las, decifrar os seus escritos. Tio Márcio viajava o mundo, morava longe, andava de avião e já tinha usado todas aquelas moedas.
Muito tarde entendi a sua história. Sexto filho de oito irmãos, saiu de casa aos dezenove anos e foi para o Rio trabalhar com moda. Alguns anos depois se mudou para a Espanha, onde morou por muito tempo. Passou as últimas duas décadas em Londres, onde eu o visitei durante meu intercâmbio para a França em 2016.
Passei seis dias com ele, na época eu tinha vinte anos. Me acomodou com carinho e conforto em seu apartamento minúsculo. Me mostrou seus locais favoritos na cidade, contou histórias. Quando ele tinha que trabalhar, eu passeava sozinha, ele me sugeria aonde ir. Eu voltava só ao fim do dia e o encontrava em casa com a mesa posta, o jantar pronto, e sempre havia chocolate de sobremesa. Conversamos muito, tomamos vinho, o vi pela primeira vez com olhos de adulta.
Ele amava a vida, amava o mundo. Sua paixão era viajar. Viajou aos países mais exóticos, com nomes de cidades que eu certamente desconheço. Passou temporadas na China, na Tailândia, no Vietnã. Era cidadão brasileiro, espanhol e inglês. Brincava com as crianças de todos os lugares, tinha amigos em todos os países. Dizia ser péssimo em todos os idiomas, mas um excelente comunicador. Trabalhava sempre somente o necessário para o próximo período em não-sei-onde. Rezou para todos os deuses, fez inúmeros retiros espirituais, cursos de yoga, se tornou mestre em Seitai. Nunca se casou, não teve filhos. Dizia sempre que todas as suas coisas cabiam em uma mala, que se precisasse podia arrumar uma mudança em poucos minutos. Sempre que vinha ao Brasil queria fazer festa. Para ele não existiam dias da semana, todos os dias eram úteis para celebrar a vida.
Há pouco mais de um ano, azias e dores no estômago passaram de um incômodo ao insuportável. Uma endoscopia revelou metástases, deram-lhe uma sobrevida de seis meses a um ano. Viajou o quanto pôde nesse tempo, despediu-se de amigos na Sicília, na Hungria, na Espanha, fez uma viagem à Cartagena com uma irmã e sobrinha.
Cheguei a Belo Horizonte no finzinho de maio, fui ao hospital vê-lo, ele se exaltou com a minha presença: “Benzinho, você está aqui!”. Me perguntou até quando eu ficava, se eu estava feliz. Eu disse que sim, que ficava mais duas semanas e meia. Conversamos, ele me contou que logo teria alta e que também voltaria, que aqui não era a sua casa. Me falou de suas últimas viagens, contei das minhas. “Que delícia, benzinho!”, ele disse sorrindo, “Isso mesmo, vai pro mundo, aproveita!”.
Tempestivamente na noite antes de eu ir embora, os médicos convidaram a família ao hospital para a despedida. Eu o vi pela última vez entre tubos, ele já não me viu mais. Acariciei suas mãos, suas pernas, o agradeci por tudo. Os sinais vitais inalterados, a respiração artificial, o bip dos aparelhos, tudo parecia insensível a ele. Um fio de vida naquela sala estéril.
Voltei no carro abatida, as lágrimas de choro me secaram por dentro. Na rádio tocou Someone Like You e eu disse imediatamente num reflexo “O Tio Márcio amava Adele”. Foi a primeira vez que falei dele no pretérito.
Não sei o que fazer com o que eu sinto, precisei escrever este texto. A ele, que viveu plena e intensamente cinquenta e oito anos. Que foi irremediavelmente feliz. Que me permitiu cedo imaginar a grandeza do mundo, que entendeu muito antes de eu existir as delícias e as dores de ir e voltar. Que não deixou nada além de memórias felizes e fotografias engraçadas. E para mim, uma coleção de moedas que guardo com muito afeto.
Sentada no avião eu o levo comigo. Gosto de imaginar que de alguma forma eu sigo a sua tradição na família, talvez um dia eu também leve moedinhas exóticas para sobrinhos curiosos. Seu espírito permanece como sempre foi: livre e generoso. Generoso até agora, por me permitir escrever sobre ele e sorrir com a sua memória.
Obrigada por tudo, benzinho. Eu sempre vou querer te levar para a praia comigo.
Que lindo Lulu! Me emocionei muito.