Encontrar o vazio. Esse é o maior desafio que eu vivo atualmente. Encontrar um espaço-tempo na minha mente onde não haja nada: nenhum pensamento, nenhuma emoção, nenhum agir pensado, nenhum sentir causado, nenhuma forma de contentamento ou descontentamento sobre minha vida, meu corpo, ou o que eu faço com eles. Encontrar um vazio onde eu apenas exista.
Me pergunto se é assim que os animais se sentem de modo geral, quando vejo imagens de uma leoa deitada num galho de árvore ou uma vaca parada num pasto, apenas existindo impassivelmente em sua natureza animal, isenta de consciência.
Queria conseguir fazer isso. O problema, no entanto, é a minha própria natureza humana: minha mente é inquieta. Eu olho, reparo, observo, contemplo e tento criar conexões com tudo e com relação a tudo. Tudo me estimula – e a vida em sociedade, especialmente em uma cidade grande, traz consigo a inevitabilidade de estar-se constante e indefinidamente sob impressões estimulantes.
Escrevi no mês passado sobre como eu andava apertada de compromissos. Chegou agosto e eu comecei um trabalho novo, chegaram os meus prazos mais importantes, e eu percebi ter superestimado a minha capacidade de gerenciar tudo isso ao mesmo tempo.
Eu achei que estava tudo bem, tudo ótimo, obrigada. Estou mais do que feliz no novo trabalho, rodeada de pessoas inspiradoras, abertas, simpatissíssimas. Eu seguia firme e forte na minha rotina de exercícios físicos, encontrava amigos com frequência. É verão e está tudo lindo e verde, a vida em seu estado máximo de exuberância. Com meus prazos correu tudo bem, tudo foi entregue, recebi feedbacks positivos. Aguentei tudo sem aparente sofrimento até o meio de agosto, quando tive meu último prazo da temporada: uma apresentação importante em um seminário. Fiquei satisfeita com o meu resultado, consegui impressionar quem eu queria. Mas dois dias depois eu adoeci, caí de cama, tive febre, dores na garganta, na cabeça, em todos os lugares, passei três dias deitada, procurando qualquer coisa para me distrair.
Nenhum livro, nenhum documentário, nem mesmo escrever um texto: minha mente não aceitava se dedicar a nada intelectualmente estimulante. Tentei encontrar qualquer atividade que me fizesse não ver o tempo passar, que me fizesse esquecer quem eu sou, onde estou, o que sinto, me aproximar o possível do vazio. Achei uma série adolescente na Netflix e me deixei cair no limbo. Fiquei chateada, não nego. Sinto que meu corpo só funciona sob a exigência do estresse – quando paro de tensioná-lo, ele desiste de mim. Já escrevi sobre isso antes, sobre como tenho adoecido quando posso descansar. Atualmente sigo numa sequência ininterrupta de adoeceres em épocas de descanso: nas minhas férias de julho ano passado, depois entre o natal e o ano novo, depois na páscoa, depois no Brasil e agora após o fim dos meus prazos.
Uma coisa, no entanto, é preciso que eu admita: minha natureza hiperatenta não deixa os sinais do meu corpo passarem despercebidos. Eu já tinha percebido que há quase dois meses tenho estado muito mais inquieta do que o de costume, não consigo encontrar temas para a escrita, não consigo encontrar a paz para ler um livro, sinto muitas coisas ao mesmo tempo. Uma vontade constante de ir para o meio do mato e ficar lá sem ver nenhuma pessoa, ouvindo o silêncio. Sinto há muito tempo a sensação de precisar do vazio, e o vazio é tudo o que não consigo encontrar.
Vivi poucas vezes na vida a sensação de entrar num transe meditativo de não pensar em nada. Lembro-me do estado de tranquilidade ao voltar à consciência, como se eu tivesse conseguido parar o tempo. Já tentei encontrar isso de novo, sem sucesso. Flerto há muito tempo com a ideia de começar a meditar, mas admito que me falta a vontade e a disciplina necessárias. Talvez um dia eu encontre coragem para encarar o desafio.
Nesse meio tempo, me contento com as visitas ocasionais que o vazio me faz. Foi assim que aconteceu nessa semana, quando eu despretensiosamente aceitei jogar uma pelada com o pessoal do trabalho. Um colega me convidou e achei que pudesse ser uma forma divertida de me enturmar, apesar de tê-lo advertido de que eu não jogo bola e de que prova disso é que eu nem mesmo tenho uma chuteira. Fui com qualquer tênis que eu tinha, e no fim estava eu lá como única mulher, jogando bola num gramado com outros sete homens duas vezes maior que eu. Tentei ignorar esse fato e não pensar em muita coisa, simplesmente corri a todos pulmões. Para a surpresa geral - inclusive a minha - fui a artilheira da partida com o incrível saldo de quatro gols marcados. Foi divertido, admito, e tive a sensação de alguma forma ser teletransportada para a infância, para as minhas memórias felizes de jogar futebol descalça por horas a fio com os meus primos. Foi assim que eu percebi, toda suada, suja de terra e meio dolorida, sentada na grama após a partida, que o vazio havia me feito uma visita.
Às vezes me pego num estado semelhante por acaso, ouvindo música, na bicicleta, ou fazendo uma atividade banal como limpando a pia da cozinha. A escrita com frequência me proporciona isso. E justamente quando estou num estado de excitação exacerbada, como estive nos últimos meses, é que o vazio se torna quase impossível de ser encontrado.
A verdade é que existe uma diferença essencial entre encontrar o vazio e ser encontrada por ele. Talvez um dia eu consiga ser capaz de encontrá-lo quando eu bem quiser. Não acho que isso seja tarefa fácil, e enquanto não tenho a disciplina dos monges para meditar, sigo fazendo o que posso, inclusive estando aqui e escrevendo sobre isso, cuidando da mente para que ela seja um destino onde o vazio goste de fazer visita.
3 verbos
Para ouvir: “Como os brasileiros analisam a sua própria saúde mental?”, episódio de 21 de agosto de 2023 do Café da Manhã, com Vera Iaconelli
Episódio interessante e relevante sobre a saúde mental dos brasileiros, como ainda existem estigmas a respeito do tema e as variações com relação a cada classe socioeconômica. Trata-se ainda de como a ideia de se alcançar um equilíbrio mental perfeito é irreal. Sou fã da Vera Iaconelli e sua participação no Café da Manhã não decepcionou.
Para assistir: Triângulo da Tristeza
Assisti a Triângulo da Tristeza (título original: Triangle of Sadness) há algumas semanas e sigo impressionada com o filme. Já vou advertindo que tem que ter estômago para assisti-lo. Cheio de cenas incômodas, esse filme mexe com as nossas entranhas numa sátira sobre a a sociedade atual, as diferenças de classe e o mundo dos super ricos. Fica aqui o trailer para quem se interessar.
Para pensar:
Time passes whether I stand still or move.
Tradução: O tempo passa eu estando parada ou me movendo.
Anne Barngrover no texto On Maps, publicado em AGNI 97.
Até a próxima!
Lulu